Dia de um pensionista

6h00. Está a nevar muito. A temperatura está próxima de zero.

Do meu quarto, olho para o meu carro coberto de pó branco. Penso para comigo: "Pobre Titine, deve estar aí ao frio, sozinha. O meu vizinho passa por ele e dirige-se ao seu carro, a dez metros de distância. Entusiasmado, limpa a neve enquanto deixa o motor aquecer. Os gases de escape formam uma espessa nuvem cor-de-rosa à volta dos faróis traseiros. Está muito frio. Olho para ele e penso: coitado, estás gelado, vais encher-te de neve na estrada, depois suar durante 10 horas no teu escritório, antes de voltares para colocar este mesmo carro, no mesmo sítio, na esperança de que não volte a nevar esta noite. Sorrio, porque me faz lembrar alguém que eu conhecia, e depois volto para a minha cama quente, ao lado da minha beleza.

8h30. Apesar da neve, a luz do dia acorda-me e eu levanto-me da cama. Sou um reformado.

Há alguns anos, eu era como o meu vizinho. Esforçava-me muito no meu trabalho, trabalhava muitas horas e, como muitos da minha geração, teria preferido poder ganhar a vida de outra forma, ter mais tempo para mim, mais liberdade, mais autonomia... Podia ter mudado de emprego e até ter trabalhado por conta própria, mas o problema seria sempre o mesmo: quer fosse um patrão ou clientes, teria sempre de responder perante alguém. Por isso, precisava de outra fonte de rendimento que fosse completamente passiva, sem o objetivo de trabalhar ainda mais.

9h00. Abertura das bolsas europeias. Vamos ter mais um dia de pânico nos mercados. Pego no meu café.

No início, esta fonte de rendimento era muito inferior ao meu emprego. Gradualmente, com paciência, os rendimentos tornaram-se mais numerosos e mais regulares. O que parecia ser um pequeno riacho quase seco transformou-se num rio cheio de vida, e depois num rio longo e tranquilo. Há um ano que cubro todas as minhas despesas sem trabalhar um único minuto. Como é que isso é possível?

10h00. As bolsas de valores caíram mais de 2%. Acabo de ler Touro matutino.

Quando andava na escola, costumávamos brincar ao amigo invisível. Tirávamos um nome de um chapéu e, durante uma semana, tínhamos de ser simpáticos para esse colega, certificando-nos de que tudo corria bem para ele, dando-lhe presentes. Em troca, outro colega fazia o mesmo por mim. O nosso objetivo era adivinhar quem era esse amigo. Era fácil, claro. Para os nossos professores, era sobretudo uma boa forma de socializar e de criar redes de contacto na turma. Em suma, devo dizer que foi muito agradável sentir que uma força externa se preocupava com a nossa pequena pessoa.

11h15. A minha querida traz-me o correio. Lá fora, ainda está a nevar.

Antes, não gostava de receber correio. Para além do meu salário uma vez por mês, a maior parte do tempo eram apenas contas. Hoje, porém, recebo os meus dividendos da Becton Dickinson, 0,45 USD por ação, o 38º ano consecutivo de aumento das distribuições. Hoje, ele é o meu amigo invisível.

12h15. Um filet mignon de porco espera-me na mesa. Ainda está a nevar e o SMI está a perder 2,5%.

No início, comprei algumas acções que pagavam dividendos crescentes, sem perceber bem o que ia acontecer. Todos os anos, em média, aumentavam os seus pagamentos em mais de 10%. No final do ano, o meu patrão chamou-me ao seu gabinete e disse-me que a situação era difícil, que o negócio estava a correr mal e que não íamos poder dar-te um aumento no próximo ano. E comprou para si o último Porsche Cayenne. Foi aí que eu disse a mim próprio: "Estou a trabalhar no duro aqui, não recebo nada em troca, e com os meus dividendos crescentes não estou a fazer nada, e eles estão a aumentar o meu salário em mais de 10% por ano.

14h00. Acordo da minha sesta. Deve haver pelo menos 30 cm de neve.

Assim, comecei a comprar mais acções, primeiro com o meu salário, depois diretamente com os dividendos que recebia. À medida que os dividendos aumentavam e eu continuava a comprar, o meu rendimento passivo aumentava. Quando digo passivo, não é bem assim. É preciso tempo e esforço para pesquisar e comprar empresas de qualidade. Mas, uma vez criada a carteira, é preciso um mínimo de tempo para vigiar os investimentos e acompanhar a evolução dos dividendos.

15h30. Wall Street abre mais de 2% em baixa. É uma derrota.

Com a carteira montada, com uma série de acções de qualidade que pagam dividendos crescentes, consegui criar um verdadeiro rendimento adicional, gastando muito pouco tempo com isso. Com o tempo, este rendimento aumentou ao ponto de já não saber qual é o meu rendimento principal. Depois de deduzir todas as minhas despesas profissionais, o meu emprego "convencional" deixou finalmente de ser necessário.

17h00. A neve está a cair e a cair. O Dow Jones perde 2,6%.

Eu sou zen. As empresas da minha carteira são essencialmente defensivas, em sectores como a alimentação e a saúde. Acima de tudo, estas empresas conseguiram aumentar os seus dividendos durante várias décadas consecutivas, apesar das graves crises. Os preços das acções podem mudar, mas os dividendos não caem.

18h00. O meu vizinho chega a casa na neve depois de um dia de trabalho duro.

Ainda me vejo a chegar a casa, exausto, sem vontade de fazer nada. A vantagem de ser pensionista é que, se não quiser fazer nada, como hoje, quer esteja a chover, a nevar ou por qualquer outro motivo, não faço nada. Por outro lado, se quiser sair, fazer desporto, ver os amigos, tenho todo o tempo do mundo. Lembro-me de um conselheiro de orientação me ter pedido para preencher um questionário quando era adolescente. Nas profissões pretendidas, escrevi "rentista". Ela disse que era original, mas, surpreendentemente, não me aconselhou a seguir esse caminho.

19h00. Uma refeição em família, com um Cabernet Sauvignon como acompanhamento.

A outra vantagem de ser pensionista é que pode desfrutar da sua noite em paz, sem pensar no dia de amanhã. Não há nervosismo em relação a um prazo, não há stress em relação a uma reunião a organizar, não há medo de um chefe zangado, nada. Posso desfrutar do meu Cabernet sem restrições e só consigo pensar no bom momento que estou a passar.

21h30. Wall Street caiu 3%.

Acedo ao meu banco e faço umas compras. É paradoxal, mas adoro quando o mercado cai, porque não me importo com o preço das minhas acções. Aproveito a oportunidade para comprar acções baratas. Na verdade, não estou a comprar acções, estou a comprar uma anuidade. E quanto mais baixo for o preço, mais posso obter de um determinado capital.

00h30. Milagre, parou de nevar.

Vou deitar-me. Não fiz muito hoje, mas sinto-me realizado. No espaço de alguns minutos, melhorei o meu rendimento. Amanhã vou esquiar e, sem fazer nada, o meu rendimento vai aumentar na mesma.

 

Este texto é uma ficção, mas não está completamente desligado, em alguns aspectos, da minha realidade atual ou futura. Talvez alguns de vós também se reconheçam neste retrato de um reformado (atual ou futuro).